13 de janeiro de 2014

As portas e os arcos da Ponte Maurício de Nassau

Arcos de Santo Antônio e da Conceição (ao fundo)
As portas e posteriormente os arcos que ficavam nas cabeceiras da Ponte Maurício de Nassau, denominada originalmente de Ponte do Recife, tiveram papéis de destaque da vida da cidade até o início do século XX quando foram lamentavelmente demolidos no âmbito da reforma do Porto e do Bairro do Recife.

Desde a sua construção original a ponte recebeu duas portas, sendo um na cabeceira da Vila do Recife e outro na cabeceira oposta, na Cidade Maurícia. Esta última pode ser vista no desenho a seguir:

Ponte do Recife - Desenho à lápis - meados do século XVII
Pela inauguração da Ponte do Recife na porta na cabeceira do lado da Vila, relatou o frei Manuel Calado:
“No princípio desta ponte pôs o Príncipe de uma parte as armas do Príncipe de Orange, e da Casa de Nassau, esculpidas em uma pedra, douradas, e prateadas, e com outras várias tintas, a quem o rigor do tempo não desfaz; e da outra parte outra larga pedra, e nela gravado este letreiro.

FUNDABAT ME ILLSTRISSIMUS HEROIS IONANNES MAURICIUS COMES NASAVIAE, EC. DUM IN BRASILIA 0TERRA SUPREMUM PRINCIPATUM, IMPERIQUE TENERET. ANNO DNI MDCXXXX.”
Estas portas tinham duas funções principais: segurança, possibilitando controlar a passagem; e de cobrança do pedágio pelo uso da ponte, que visava remunerar o investimento na sua construção. A do lado da Vila do Recife era conhecida como Porta da Ponte ou "Pontpoort". Ao entardecer as portas eram fechadas, impedindo que se entrasse na cidade à noite, a não ser que apresentassem uma "senha".
"No uso da ponte foi estabelecido um pedágio de dois stuivers (vigésima parte do florin), cobrando-se aos escravos e soldados 1, aos cavaleiros 4 e aos carros de bois 7 cada um".
As portas holandesas tinham estética funcional e arquitetura simples: um frontão e dois pilares feitos com tijolo e madeira. Ainda no século XVII, após a expulsão dos holandeses, as portas foram derrubadas e reconstituídas pelos portugueses, em alvenaria, nos estilos barroco. A Porta da Ponte deu lugar ao Arco da Ponte e sobre ele foi construído uma capela com a invocação de Nossa Senhora da Conceição, passando a chamar-se de Arco da Conceição. Situava-se mais ou menos no cruzamento das atuais Marquês de Olinda e Madre de Deus.

O Arco da Conceição participava ativamente da vida da cidade e manteve-se como um importante marco, mesmo com a construção do novo dique no século XVIII, que ampliou as terras firmes junto à margem do rio possibilitando a construção dos armazéns junto à Alfândega. Muitas festas religiosas aconteciam ali, principalmente as novenas em veneração à Nossa Senhora da Conceição, que eram precedidas de pompa ao som de banda e fogos de artifício. No dia 2 de Dezembro de 1898 o Diário de Pernambuco registrava:
"Novenas do Arco: principiaram anteontem as novenas da festa de Nossa Senhora da Conceição, no arco da Ponte do Recife. Concorridíssimas e revestidas da pompa e brilhantismo de costume, as mesmas novenas têm agradado a população, o que deve-se muito à comissão promotora do festejo"
O comércio também se desenvolveu no seu entorno e todo o conjunto arquitetônico tinha um lugar de destaque.

Arco da Conceição visto à partir da antiga Marquês de Olinda - 1906
"Neles [nos arcos] se efetuavam festas em honra dos respectivos patronos celestes. Pomposa era a festa do Arco da Conceição, do outro lado da ponte, no começo da rua da Cadeia. Em baixo tinha duas lojazinhas: uma em que o Carvalho vendia estampilhas federais e cigarros. Outra, oferecendo bilhetes de loterias. O comércio em grosso do bairro do Recife, auxiliava os festejos que mereciam toda a simpatia e prestígio do vigário do Corpo Santo, o cônego João Augusto. Havia novenário concorrido. Armavam-se coretos, um defronte da firma Camorim, outro perto da Drogaria Conceição. E no dia da Conceição quem vinha tocar ali era a Charanga do Recife, banda querida e apreciadíssima, sempre aplaudida nas suas difíceis “peças de harmonia”.
Dia santificado, dia grande, não faltava gente para aumentar o número já crescido de fiéis residentes no próprio bairro. Acorriam famílias dos arrabaldes. Misturavam-se tipos de todas as classes. Desde o açucareiro da Passagem da Madalena ao catraieiro da Lingueta. Desde a viúva rica moradora no Caldeireiro à mocinha pobre do Pátio do Terço. Do chefe de seção do Correio ao aguadeiro do beco das Sete Casas. Da francesa da Pensão Siqueira à “mulher-dama” da rua da Senzala Velha. Festão.
O arco recebia o engalanamento das rosas de pano feitas por umas solteironas da rua do Bom Jesus; de folhagens de palmeiras trazidas por um devoto barcaceiro; de folhas de canelas mandadas por um comerciante da rua da Cadeia; de cravos como oferenda de uma moça de Caxangá.
Lá em cima ficava a capelinha com janelas envidraçadas para a rua. A imagem de Nossa Senhora da Conceição no altar. Rezava-se missa pela manhã e à noite cantavam a novena seguida de ladainha."
(Mário Sette, Maxambombas e maracatus)
A porta que ficava na cidade Maurícia deu lugar ao Arco de Santo Antônio, dando também o nome à ilha. Ficava na entrada da atual Rua Primeiro de de Março.

Arco de Santo Antônio
"Na festa [...] não se vestiam de excessivo realce, é certo, porém, tinham muito de pitoresco e de típico. As do Arco de Santo Antônio, por mais modestas, nem exigiam o fechamento do comércio, antes da hora costumada. O Arco barrava a rua Primeiro de Março, ao subir da ponte. De um lado a Livraria do Ramiro, do outro, O Barateiro. Perto, a Viúva Guilherme, A Graciosa, a Loja de Chapéus, do Zé de Melo, a Livraria Francesa, expondo nas vitrinas do oitão os novos livros de sortes para São João.
Todo aquele trecho final de rua cerrava-se ao trânsito dos bondes e das carroças. Transformava-se num campo festivo. Armava-se um coreto de tabuazinhas azuis e vermelhas com grandes focos de acetilene nos ângulos. Espichavam-se uns cordões com bandeirinhas. Folhagens nos lampiões e no arco. O Santo Antônio, lá em cima, no nicho, entre velas e flores. Durante três noites rezavam o tríduo.
No dia 13, porém o aspecto melhorava. Meio santificado. Os “Antônios” feriavam a data. Havia mais solenidade. Honrava-se, ao menos, a patente do santo. Cedo ainda, as negras de bolos estendiam os tabuleiros rentezinhos às calçadas; vendedores de geladas; meninos de midobins… De fora de Portas chegava pelas pontes do Recife e Buarque de Macedo gente e mais gente. Mulheres puxando crianças, homens de roupas de brim novas em folha, velhas de olhos já pouco afeitos ao movimento das ruas e com vestidos dignos de figurar numa exposição restrospectiva de modas.
Os fracos lampiões a gás faziam o que lhe era possível para emprestar claridade ao local. Todavia, as lojas ainda abertas davam uns sobejos de sua iluminação para melhor realce festivo. Passavam as últimas carroças de açúcar, muito meladas, compridonas, baixinhas, arastadas pelos bois fatigados e babosos. Os bondes da Carril já tinham cortado o tráfego por baixo dos arcos e contornavam agora a rua do Imperador. Ao pé da ponte num quiosque que ramalhuda gameleira protegia, homens do povo e barcaceiros viravam uma “bicada”, loquazes e expansivos.
De repente o toque da música alvoroçava tudo. As portas das lojas povoavam-se, as varandas enchiam-se. E a banda do 14 ou do 27 apontava na estreita rua do Cabugá, em forma, de túnicas azuis e calças vermelhas, no entusiasmo de um dobrado."
(Mário Sette, Maxambombas e maracatus)
Os arcos sempre figuraram das gravuras do século XVII até o início do século XX.
Ilha de Santo Antônio - início do séc. XIX - Notar os dois arcos

Arco da Conceição ao lado dos armazéns do Cais da Alfândega
Arco da Conceição
Arco de Santo Antônio

Com as reformas do Porto e do Bairro do Recife no início do século XX eles foram demolidos, lamentavelmente, em nome da "modernidade", e na época não faltou quem lamentasse aquela destruição: o Arco da Conceição foi derrubado em 1913 e o de Santo Antônio em 1917.

Demolição do Arco da Conceição em 1913
Arquitetos e urbanistas defenderam a construção de um "girador" ao seu redor para preservar a história da cidade e proporcionar a mobilidade e a modernidade almejada, mas ...

5 comentários:

  1. Que barbaridade. Que bom seria poder trazer de volta tais monumetos.

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  2. Muito bom o texto, especialmente pelo embasamento bibliográfico e fotos.

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  3. Lamentável. Uma civilização ou nação não surge do nada. Tem passado e história. Ao invés de preservar o nosso passado,
    para melhor compreender o presente, nós simplesmente o destruímos em nome do progresso os riquezas.

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  4. Não existia antigamente consciência por parte da população o conceito de preservar as obras antigas.
    Lembro que no inicio da década de 1960, eu tinha 14/15 anos de idade, cortei parte de uma goiabeira de casa para fazer uma forquilha de um estilingue, que iria usar para matar passarinho. Quando meu pai perguntou por que eu cortei a goiabeira, expliquei e não teve nenhum comentário.
    Uma atitude dessa hoje é muito repreendida, porem naquela época o que importava eram as coisas modernas.
    Hoje existe uma consciência de respeito as coisas antigas.
    Hoje quando vejo uma foto antiga (ex início do seculo passado), fico "conversando com ela!", para ela me contar sobre a foto. Ex. Pelos corros que possam aparecer, tento localizar o ano. Pelas roupas tento descobrir a estação do ano. Pela posição das sombras projetadas,e conhecendo o local, imagino a posição do sol, tento definir o horário que tirada. Se é de um grupo de pessoas, tento descobrir se são parentes/familia ou um grupo de amigos.
    Esse método eu vi há uns 25 anos atrás na TV um programa sobre pinturas de grandes artistas, uma freira inglesa que apresentava um programa sobre quadros famosos, num desses programas ela apresentou Pieta de Leonardo da Vinci, falou sobre o quadro quase meia horas, fiquei impressionado.
    Parabens pelo seu material apresentedo
    Guilherme Eduardo Hernandez - da cidade de Santos/sp

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