17 de janeiro de 2014

E o bairro do Recife veio ao chão ...

Demolição de parte do antigo bairro na década de 1910
No âmbito da primeira grande reforma do Porto do Recife, que teve seu início em 1909, boa parte do Bairro do Recife, com seus sobrados, ruas enviesadas, ruelas, arcos, igrejas e outros marcos históricos, foram demolidos para dar lugar a um novo e moderno bairro com "ares europeus".

A paisagem do Bairro do Recife passou por transformações significativas ao longo do tempo, em parte decorrente dos aterros realizados ligando as ilhas formadas no delta ao istmo e ao continente. A “lingüeta” de terra, onde foi iniciada a ocupação do bairro, era dez vezes menor que a sua área total atual (veja a sequência abaixo organizada por José Luiz Mota Menezes):


Mas a mudança mais significativa ocorrida na dinâmica do Bairro foi proporcionada por uma grande reforma urbana para melhoramento do porto no início do século XX. 

O Bairro do Recife sempre teve o seu destino estreitamente ligado ao porto. A vinda da família real para o país e a abertura dos portos brasileiros ao comércio estrangeiro repercutiram profundamente na cidade. A entrada de capital britânico revigorou a economia local, forçando a modernização do porto do Recife, por onde escoava grande parte da cana-de-açúcar e do algodão. A Revolução Industrial trouxe o emprego do ferro nos navios, o que aumentou o comprimento e a sua capacidade de carga, exigindo mais dos serviços portuários e dos ancoradouros que já não suportavam a demanda.

Vista dos arrecifes e os atracadouros, tendo em primeiro plano o Forte do Picão e ao fundo a Torre de Malakoff
Prédio da Associação Comercial (esq.) e o Cais da Lingueta (próximo ao atual Marco Zero)
Final do século XIX
Cais da Lingueta em 1904 
Cais do Arsenal de Marinha - Década de 1900
Largo do Arsenal de Marinha - Década de 1900

Atracadouro - Década de 1900
Nesta época, o bairro estava em plena efervescência econômica, concentrando o comércio exportador e importador, as finanças nacionais e estrangeiras, os serviços públicos básicos, além das comunicações. O bairro começou a inchar, abrigando cerca de 13 mil pessoas distribuídas em 1.180 casas e sobrados, organizadas em ruas enviesadas e ruelas, reunindo também uma parte pobre da cidade (pescadores, artesãos, caixeiros, trabalhadores portuários). Entretanto o comércio local e, principalmente, o exterior fervilhavam.
Alfândega em 1906

Vista sul da Torre Malakoff - década de 1890
Rua do Bom Jesus - 1890
Casario do Bairro do Recife visto dos arrecifes - final do século XIX
A conexão imediata entre o Bairro do Recife e o restante da cidade era feita pelo bairro de Santo Antônio, na ilha homônima, que abrigava o Palácio do Governo, o Tesouro do Estado, o Quartel da Cavalaria, o Fórum, o Teatro Santa Isabel, a Biblioteca Estadual, o Gabinete Português de Leitura e as redações dos jornais da época. O principal acesso era através da Ponte 7 de setembro (atual Maurício de Nassau).

Bairro de Santo Antônio visto da Alfândega - 1906
Os sobrados, com 2, 3 e até 4 andares, possuíam um comércio no térreo e os demais andares eram habitados pela família do comerciante. Com a reforma, que teve início nas primeiras décadas deste século, o cenário do bairro mudou significativamente.

Rua Marquês de Olinda antes de ter seus sobrados derrubados
Os primeiros projetos - e polêmicas - para reformar o Porto do Recife começaram a ser elaborados em 1815 e estenderam-se até 1908. Lubambo em “Bairro do Recife: entre o Corpo Santo e o Marco Zero” (1991), faz um histórico sobre os projetos que foram apresentados neste período. Destes, os mais expressivos foram aprovados em fins do século XIX sob comando do engenheiro Alfredo Lisboa. Entretanto, os trabalhos só iniciaram mesmo no ano de 1909.

O projeto também abrangeu a reforma do Bairro do Recife ou da Freguesia São Frei Pedro Gonçalves (nomenclatura administrativa do bairro até as primeiras décadas do século XX) promovendo, junto às intervenções de melhoramentos portuários, uma significativa transformação urbana e social do bairro. Assim, o Recife sofreu a sua primeira grande reforma urbana.

Boa parte do núcleo original da cidade foi demolido para dar lugar a um traçado influenciado pelo urbanismo francês do século XIX, principalmente aquele implementado por Haussmann, prefeito de Paris que promoveu uma enorme reforma urbana naquela cidade entre 1852 e 1870.

Foram alargadas ruas, como a Marquês de Olinda, e criadas outras, a exemplo da Avenida Rio Branco, juntamente com as ruas transversais. Aterros foram realizados estendendo a área do bairro de aproximadamente 73 ha. para 90 ha. Nesta época também foram executados planos de saneamento associados às idéias sanitaristas da época, fazendo com que o processo de intervenção urbana fosse traduzido em higienização ampla, com a intenção também de erradicar as moléstias e focos de epidemias que proliferavam nas regiões portuárias. No Recife, o estado de insalubridade era grave, com recorrentes focos epidêmicos de tuberculose, varíola, gripe, beribéri, febre tifóide, sarampo, desinteria, lepra, escarlatina e paludismo (ORLANDO, 1908).

A reforma, no entanto, não levou em consideração a conservação do patrimônio histórico. Prédios de suma importância histórica foram destruídos, tais como a Igreja do Corpo Santo, construída pelos portugueses na metade do século XVI, nos primórdios da cidade, e os arcos da Conceição e Santo Antônio, que davam passagem para a Ponte Maurício de Nassau. Foram demolidos também alguns dos fortes datados do século XVII, como o Forte do Picão (que aparece na mais acima) construído nos arrecifes em 1614. Dos 1.180 prédios do bairro, 205 foram demolidos. Houve desapropriações e os antigos moradores formaram uma população marginalizada, ocupando os prédios em ruínas ou erguendo barracos.

Demolição do casario do Bairro do Recife - 1912-1913
Demolição do casario do Bairro do Recife - 1912-1913

Demolição da Igreja do Corpo Santo - 1914
Demolição da Igreja do Corpo Santo - 1914
Igreja do Corpo Santo - Litografia de Luis Schlappriz, 1863
Localização da Igreja do Corpo Santo
(Superposição de plantas dos século XVII e XX)
"Pouco a pouco desaparecia aos olhos não um bairro, mas um cenário de milhares de criaturas no seu presente e no seu passado. [...] famílias modestas das habitações baratas em últimos andares de sobrados, quitandas e vendolas, quiosques e barracas, “raparigas” de fáceis leitos e pequenas pagas, arraigados moradores da freguesia por devotos do Senhor dos Passos ou da Conceição do Arco, tudo, tudo se deslocava enquanto as picaretas golpeavam e os tetos se abatiam. [...] e o Corpo Santo também se desmanchava [...] Poucos falariam ainda desse burgo onde Recife nascera, tão enviesado de ruas e ruelas [...] tudo no chão. Nunca se vira uma loucura assim." (Mário Sette)
Reforma no Porto do Recife ...

Aterro para os armazéns e docas - Década de 1910
Construção dos armazéns e docas - Ao fundo a Torre Malakoff
Construção dos armazéns e docas
Reforma do Porto do Recife - Década de 1910

Construção das novas avenidas, ruas e praça ...

Construção da Avenida Rio Branco - Década de 1910
Construção da Avenida Rio Branco - Década de 1910
Construção da antiga Bolsa de Valores - Década de 1910

Construção da Marques de Olinda - Atual prédio da Folha de Pernambuco,  s/a torre
Av. Rio Branco - Edifício Luciano Costa (notar que hoje está sem a cúpula)
Praça Rio Branco / Marco Zero - Início década de 1920
(Notar o prédio do Banco do Brasil substituído atualmente pela seda da Nassau)
Praça Rio Branco / Marco Zero - Início década de 1920
Bondes na Avenida Rio Branco - Início da década de 1920
Av. Marquês de Olinda - Início da década de 1920
(Em primeiro plano o Ed. Chanteclair)

Av. Rio Branco - 1922
Av. Marquês de Olinda - Final da década de 1920
Vários tipos de bondes na Praça Rio Branco - Início da década de 1930
(em segundo plano o edifício do Banco do Brasil - atual Nassau)

Embora tenha ignorado as conseqüências sociais e históricas, a reforma concedeu ao bairro um aspecto urbanístico e estético típico da Belle-époque assemelhando-se às cidades da Europa. Como se pode observar nas fotos acima o estilo predominante dos novos prédios foi o neoclássico (eclético), com bulevares inspirados nas edificações parisienses da segunda metade do século XIX, conforme já mencionei.


No filme abaixo com o título de "Veneza Americana", de 1925, é possível notar na primeira tomada a Marquês de Olinda e Ponte Maurício de Nassau, os bondes, calhambeques e as pessoas circulando nas ruas.


Neste outro vídeo, filmado em junho de 1927 por ocasião da passagem do hidroavião Jahu pelo Recife, comemorando seu feito memorável, é possível reparar as tomadas do Porto e do Bairro do Recife, entre outros com os movimentos das ruas, pessoas bem vestidas, bondes, carros (na realidade calhambeques), no estilo Belle-époque.

Após a reforma, a reapropriação do Bairro se deu principalmente através de companhias de seguros, instituições bancárias e organizações ligadas ao comércio importador e exportador, tornando a área ficou valorizada por alguns anos. 

Vista aérea do Bairro do Recife - Fotografia tirada do Graff Zepellin - início da década de 1930
Com a chegada de um maior número de embarcações aumentou também o número de marinheiros e prostitutas circulando pelo bairro. A sujeira causada pela movimentação de cargas também afetou o interesse das famílias de boa renda. Depois da Segunda Grande Guerra, os prédios que tinham sido reformados e não foram vendidos, começaram a ser alugados para comerciantes, caixeiros viajantes e prostitutas. Todos usufruíam das habitações sem levar em conta a conservação do prédio e iniciou-se um processo contínuo de degradação do bairro.

12 comentários:

  1. Que trabalho de pesquisa fantástico, viajei no tempo enquanto lia, e não deixei de indignar-me com o descaso com o patrimônio histórico que ocorreu ao longo dos anos. As imagens que você usou na sua matéria são raríssimas, eu tenho milhares de imagens antigas do recife salvas em meu computador, e muitas das que você usou aqui, eu ainda não tinha. Agradeço pelo trabalho incrível!

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  2. Amigo boa noite, a uma curiosidade do recife holandês que em minha residencia a um bom tempo eu e meu filho de 18 anos temos algumas discussões acaloradas sobre a primitiva ermida do corpo santo no velho bairro do recife, segundo informações do frei Manoel Calado amigo pessoal do conde Mauricio de Nassau em seu livro o valeroso lucideno ele narra com riqueza de detalhes o funeral do irmão do conde Mauricio de Nassau, João Ernesto na igreja do corpo santo,pesquisando em velhos mapas holandeses em antigos traçados pesquisas na internet,A CURIOSIDADE é se durante a demolição da igreja os restos mortais do conde João Ernesto de Nassau ele foi exumado ou foi destruído durante a demolição ou continua no subterrâneo do recife holandês? Sim na minha humilde opinião o Recife holandês esta vivo mais em ruínas abaixo da cidade nova, é uma herança cultural que jamais o povo pernambucano pode esquecer.

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    1. Tenho a mesma curiosidade não apenas o corpo do Jovem conde, mas também de senhor-de-engenho Servaes Carpentier e do almirante Lichthart.

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    2. Tenho a mesma curiosidade não apenas o corpo do Jovem conde, mas também de senhor-de-engenho Servaes Carpentier e do almirante Lichthart.

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    3. Excelente pergunta, o que foi feito dos corpos das pessoas que estavam sepultadas na Ermida do Corpo Santo??? Em especial os restos mortais do Conde João Ernesto de Nassau??? O povo pernambucano quer saber;
      Será que jogaram simplesmente no lixo? Nao me surpreenderia, mas acho que como algumas famílias da época deveriam ter jazidos lá, deve ter havido algum procedimento,e acho que a Igreja também tem os seus, só não faço ideia quanto aos restos do Conde, certamente o seu jazido era diferenciado, consideração zero com ele é com a memória da nossa história, até pouco tempo atrás ainda existia esse impasse de reverensiar invasores, o Nassau ao voltar para Holanda era chamado de "o brasileiro" porque a figura do Nassau ia muito além de um colonisador, por ele não teria voltada pra Holanda, teria ficado aqui, ele transformou Recife do XVII, na primeira cidade com características de metrópole das Américas,etc etc. acho que todos iriam gostar se um dia encontrassem os restos mortais dele, afinal ele faz parte do imaginário pernambucano holandês .

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  3. Estou redigindo a historia de minha família Souza Bandeira e gostaria de utilizar a imagem da planta de localização da Matriz do Corpo Santo. Assim, solicito sua autorização

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  4. eu vi que a última postagem foi em 2014, espero que você volte a postar, pois estou desde cedo lendo e relendo seu blog.
    parabéns!

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  5. Retrospectiva história fantástica. Parabéns.

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  6. Retrospectiva histórica , fantástica. Parabéns.

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  7. Belíssimo trabalho com textos e fotos que enriquecem a documentação histórica de nossa cidade. É de cortar o coração, mas desprezar nosso passado, jamais !

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  8. Segundo o Jornal do Recife, do dia 19 de fevereiro do ano de 1913, dos restos mortais da Igreja do Corpo Santo que foi demolido seguiriam ao Cemitério de Santo Amaro, ou aos seus respectivos proprietários, ou entregue a irmandade.

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  9. Bem já li que quem foi enterrado na Igreja do Corpo santo foi o Carlos e não o João Ernesto Nassau, http://recifeesquecido.blogspot.com/2014/05/matriz-do-corpo-santo-essa-igreja-no.html

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